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M. Barbosa


Em 1988, poeta recusou, com violência, convite para participar de coletânea de ensaios sobre a Semana de 22.


Não privava ninguém de nada, a não ser, no máximo, de sua parca e mínima companhia. Todas as lembranças de outrora eram outras, sem que tivesse nada a dizer. Mesmo assim foi chamado. Disse não. Impossível. Não. Insistiram. Deixou de mão. Continuaram, no azucrim. O ruído de gente pelo mundo intrigava-o: queriam saber o quê, dele? Ã? Não baixara há tempos o tom de voz que nunca teve? Poupassem-no. Há bem uns vinte anos que desejava para si próprio um destino miúdo, de passarinho que amanhece morto, esticado na gaiola.


Que nada. Queriam exposições, opiniões, investidas virulentas


– Mas eu não penso nada sobre isso, amigo.


Ã? Fossem ao zoológico, onde as serpentes se enroscavam umas nas outras. Onde até ele próprio já se deixara expor feito ancestral matamatá.


Anhã. Não.


– Não tenho opinião formada. Nem sequer formo opiniões.


Interpelavam-no com uma urgência que ele desconhecia. Queriam transmitir a ele uma responsabilidade qualquer, a do ritmo eletrizante em que se moviam. Ai. E. Como? Hã. O ruído repetia-se, redobrava-se. Ruído de gente que tinha crista e penas, só podia ser. Um cocorocó estridente e fora de hora. Ou eram paquidermes querendo imprimir seu peso às palavras, ao convite solene e ridículo.


– Olhem, prefiro ficar distante de tudo isso. Não sou indicado. Realmente, não sirvo.


Aí, lá. Rugiram do outro lado da linha, feras famintas. Cantaram e inflaram-se como sapos carentes.


– Chamem fulano – ele ainda sugeriu. – Num ai ele fala tudo sobre tudo.


Um-hum. Assim, poupassem-no, por favor. Aquela gente dava preguiça e tedio, e quase pena. Era uma insistência viscosa, repulsiva. Atribuíam à coisa uma importância que ele não via. Que desperdício. Cada um que se metesse com seu próprio caminho. Nem na lua tinha coisa alguma. Na lua não tinha era nada. Aí.


Renovaram-lhe o convite, cegos. Encarregaram alguém que, supunham, teria mais influência sobre ele.


– Ah! Ah!, você!


Ele conhecia o sujeito, afinal. Saía das brumas de outrora, o infeliz, e se colocava como qμem pudesse hoje enfronhar-se na vida cotidiana e clara e retirada dele. Em nome de quê? Quanta hipocrisia. Individuozinho morcego, idealistazinho de botequim, revelara-se um desastre pessoal pior que os outros, vendera-se feito boi gordo. Aí. É.


– Mas eu não penso nada sobre vocês, companheiro. Anhã. Claro.


– Não tenho nada a dizer sobre isso também. Pois é.


Era preciso rir dessas crueldadezinhas baratas que o ruído da gente do mundo dissimulava em gentileza. Rir lá no íntimo. Aí. Lá. Sabia muito bem o que queriam fazer com ele. O que queriam que ele fizesse a si próprio. Hipócritas.


Ofereceram-lhe em dobro os honorários. Ã? Ah! É?


– Pois para mim e indiferente. Seria realmente um desperdício, creiam.

Morderam-se do outro lado da linha. Soltaram fogo pelas ventas. Lamberam as patas, indignados.


Ora, ora. Quanto custava deixar em paz um homem? Por que incomodava tanto a indiferença? Por que duvidava-se inclusive da ignorância que a pessoa alegava, claro e bom som? Som. E não ruído importuno. Que chamassem fulano. num ai falava tudo sobre tudo. Tinha uma historia picante para contar. A mãe dele suicidara-se, de tão intratável resultara-lhe o filho, só podia ser.


– É, chamem fulano. Creiam.


Não queriam um espírito de porco? Pois, então, fulano era perfeito. Vivia abanando o rabo curto a quem quer que o convidasse para expor suas opiniões de hiena esperta. Seus pensamentos de cobra. Até a mãe do infeliz suicidara-se. Por indigestão de vazio, aquele que entope a vida de gente rica.


No mais, vissem, por favor, se o deixavam definitivamente em paz. Pensassem assim: nem na lua tinha alguma coisa. Na lua não tinha mesmo nada.


De tarde, dissessem que não atenderia ninguém. Assistia pela televisão a um jogo de futebol. Abençoada falta de importância. Importante irresponsabilidade. No intervalo, talvez. Melhor, nem mesmo no intervalo. Aí... ú... gô-ô-ô-ll... oll. Saiu depois, feliz e satisfeito. Foi pegar os últimos raios de sol no parque. Deitou-se na grama. Lembrou-se de Paris e disse a si mesmo: “Não mexe com meu chapa”. Coisa ótima essa, que inventaram em Paris: “Não mexe com meu chapa”.


Era preciso censurar nas pessoas certas atitudes de cachorro. Cachorro, não. Era pouco. De porco mesmo, espojando-se na lama e querendo arrastar para lá os outros. Bastava dizer não, indiferente, ignorante, esquecido.


Voltando para casa, deparou-se, diante do prédio em que morava, com as duas figuras: a do sujeitinho que conhecia e a do outro, que o interpelara mais de uma vez..


Ã? O quê?


Mas não dissera, nítido e bom som, que não tinha nada a dizer? Não negara qualquer importância e preço? Não indicara fulano até? Não se confessara, graças a Deus, ignorante? Com que direito, pois, vinham espioná-lo na porta de sua casa? Vinham babar ali, feito cães raivosos? Pensavam o quê, em nome de quem? Tinham mãe ou não tinham mãe?


Não disse nada. Lançou para ambos um olhar antigo, antediluviano, horrendo. Armou-se numa carapaça, esperou que abrissem a boca para um único ruído que fosse. Aí; É. Arremessou o corpo para o lado, girou no ar como chicote, as mãos no chão, as pernas armando um semicírculo. Aí... Não. Cortou. Aú-cortado. Para um outro e definitivo golpe. Ou melhor... Num ai, os pés juntos, aú-fechado, deu o coice. Na cara de um, na cara do outro.


Certo tipo de gente só entende a linguagem dos cavalos. Desistiram de procurá-lo. Lá. Aí, somente aí. Ah! Ah! Hum-hum. É.


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M. Barbosa, paulistano, poeta e professor de História da Arte, faleceu em 1988 e deixou este manuscrito dobrado entre as páginas de um exemplar de “O Homem da Máscara de Ferro”, de Alexandre Dumas, encontrado anos depois num sebo no Viaduto 9 de Julho.

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